O retrato literário e a biografia como estratégia de teorização política
Quando Aristóteles, na sua "Poética", apresenta a conhecida distinção entre Poesia e História, pelo facto de a primeira representar os universais possíveis e a segunda o particular ocorrido, tem como objeto desta consideração discursos narrativos distintos, de acordo com objetivos de representação também diversos. Porém, o retrato literário, conforme o podemos perceber já em Heródoto, é desde cedo explorado pelo historiador como forma de transmitir a sua perceção dos mecanismos da História e do modo como, por detrás do facto histórico singular, é passível de apreensão esse jogo entre contingente e necessário que leva o homem a agir como age. Os discursos das personagens de Tucídides são o exemplo da aplicação do modelo poético: da ação histórica, concreta e particular, extrai o historiador a palavra que potencialmente teria sido proferida por quem comandou ou por quem sofreu. Deste modo se transfere para os agentes da História a própria perceção de quem, mais do que registá-la, a tenta compreender. Se na História o homem se revê, para se compreender enquanto indivíduo e enquanto comunidade, devemos ainda à Antiguidade Grego-latina a conversão do discurso histórico num exemplum que não sirva apenas como meio de compreensão, mas também como instrumento de aperfeiçoamento da Humanidade. A retórica do retrato literário, porquanto converte o humano, concreto e individual, em suporte expressivo de um universal com que o historiador-poeta pretende chegar ao seu público — de ouvintes ou de leitores — virá a converter-se em estratégia de teorização política e converter-se-á num poderoso filão discursivo da ou das culturas ocidentais — até ao império da imagem e ao tratamento da imagem ligado à competição pelo poder ou à imposição da figura de quem o exerce. Por seu turno, a biografia política nasce em concatenação com o retrato literário, de dimensão diacrónica, como esforço de compreensão da natureza e da ação de homens que se destacaram na vida política de comunidades e a determinaram. Procura o seu autor compreender os nexos entre homem e a sociedade para, já em Plutarco, se iniciar um processo de identificação entre o homem e essa sociedade, congéneres, consubstanciando o destino poetizado do homem os vícios e virtudes da comunidade, e aparecendo a comunidade como uma espécie de projeção humanizada do destino do biografado. É objetivo deste volume, porventura o segundo de uma série, focar alguns exemplos, desde a origem greco-latina até à modernidade, de um recurso expressivo de cariz poético-político que constitui uma das múltiplas linhas de força da linguagem cultural europeia de matriz clássica. Inscrito no contexto de divulgação de resultados do Projeto de Investigação da UI&D – Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, «Génese e desenvolvimento da ideia de Europa», e antecedido por Nomos – Lei e sociedade na Antiguidade Clássica, este volume e a investigação que implicou teriam de ser perspetivados interdisciplinar e internacionalmente, num diálogo cultural que se impunha.